quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

4 MESES, 3 SEMANAS E DOIS DIAS

"A interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte."

Sem cerimônias e músicas para criar o clima, o filme inicia com a pálida Gabita (Laura Vasiliu) em um pequeno quarto de universidade, arrumando as coisas e empacotando uma toalha de mesa numa mochila, enquanto papeia banalidades com Otilia (Anamaria Marinca, sensacional e contida). O diretor não deixa claro o que está ocorrendo e o porquê. Leva tempo para descobrir o significado em suas palavras. O diálogo soa natural – assim como os móveis do quarto, pouco iluminado, e os gatos que Otília encontra.

Aparentemente, não há nada de artístico, nenhuma preocupação estética – como o cotidiano, a vida real. Porém, o filme não é nada, senão um triunfo estético, fluido no movimento de câmera, rigoroso no enquadramento e nas longas tomadas que nos levam a explorar as imagens e não apenas observá-las. Do início silencioso, apesar do nervosismo de Gabita, o ritmo muda subitamente, quando Otilia vai às compras. Com a câmera em movimento, Otilia cruza o quarto, visita alguns outros estudantes e compra cigarros. Há uma urgente pressa em seus passos, apesar da casualidade mostrada; uma necessidade expressa tanto no seu rosto preocupado, como na forma em que o diretor registra esses momentos em sua câmera.

Ao longo do filme, essa persistente visão cria um nível extraordinário de tensão. Otília logo emerge, iniciando uma jornada que a leva de hotel a hotel e através de um labirinto de ruas sinistras e de comportamento humano duvidoso. Otilia ajuda Gabita, que por sua vez quase entra em colapso, insurge contra seu amante, Adi (Alex Potocean), e com um grotesco “fazedor” de abortos, conhecido como Mr. Bebe (Vlad Ivanov, aterrorizador), que testará o limite da amizade das duas mulheres. Em sua odisséia, o diretor e sua câmera mantém-se em Otilia, sem closes, discursos , falso moralismo ou julgamento.

Acabamos por entrar em contato com um mundo absolutamente real de trocas de quartos, vidas e negócios excusos. A verossimilhança pode ser surpreendente, alarmante e envolvente. Assistimos à estória deste lugar reproduzida nas pessoas, no rosto determinado de Otilia e no tipo submisso de Gabita, que atravessam as dificuldades ao longo do tempo.

Você observa isso também na câmera – como o cão que passa próximo a Otília, quando esta tenta pela primeira vez reservar um quarto de hotel – com a leveza de um simples incidente. Horas mais tarde, durante uma cena tensa, ela é cercada por cães latindo numa rua abandonada; percebemos que não há incidentes ali, somente arte.

Em alguns aspectos, o diretor criou uma companhia para outro recente filme romeno, “ "A Morte do Sr. Lazarescu", de 2005, dirigido por Cristian Puiu – e filmado por Oleg Mutu, o maravilhoso diretor de fotografia de “4 meses.....” – "A Morte do Sr. Lazarescu" explora a intersecção entre o social e o pessoal no corpo humano e as formas comuns e espetaculares que nossos corpos são de repente situados no mundo como objetos e pessoas. Ao longo da tortura, que provavelmente inspirou o título do filme, o corpo do Sr. Lazarescu se torna um campo de simbologia, um panorama de desespero e um lugar de brutal troca entre corpos.

Em entrevistas o diretor resiste em fazer interpretações do seu filme, de que se trata de uma metáfora utilizando o aborto para criticar o regime totalitário de Ceausescu. Lembremos do que disse a grande escritora Susan Sontag “que a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.” Contudo, "4 meses...” pode ser também sobre a capacidade de decisão das pessoas e da luta por liberdade face ao estado de opressão, fazendo com que tais interpretações podem ser limitadas. O diretor não se esquece do real universo feminino como força principal de seu filme e uma de suas grandes virtudes é que faz com que nós também não esqueçamos.

Assisti ao filme, talvez influenciado por uma amiga romena, que havia me recomendado o filme e fiquei surpreso. Vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, infelizmente foi desprezado pela Academia de Artes e Ciências de Hollywood, na categoria de Filme Estrangeiro. “4 Meses...” é um filme que merece ser visto pelo maior número possível de pessoas, parte porque oferece uma benvinda alternativa ao tímido e trivial enfoque dado ao aborto pelo cinema americano, mas também porque marca o surgimento de um novo talento – o diretor Cristian Mungiu.



4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias(4 Luni, 3 Saptamani si 2 Zile)
2007 - ROMÊNIA - 113 min. Colorido - Drama
Direção: CRISTIAN MUNGIU. Roteiro: CRISTIAN MUNGIU. Fotografia: OLEG MUTU. Montagem: DANA BUNESCU.Música: TITI FLEANCU,DANA BUNESCU e CRISTIAN TARNOVETCHI.Produção: CRISTIAN MUNGIU E OLEG MUTU para IFC FILMS e RED ENVELOP ENTERTAINMENT

Elenco: ANAMARIA MARINCA (Otilia), VLAD IVANOV (Domnu Bebe),LAURA VASILIU (Gabita), ALEX POTOCEAN (Adi), LUMINITA GHEORGHIU (Doamna Radu)

Prêmios:
Palma de Ouro no Festival de Cannes/2007.
Melhor Ator Coadjuvante - Vlad Ivanov - pela Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles/2007.
FIPRESCI - Official Competition - Festival de Cannes/2007.
French National Education Administration Prize - Festival de Cannes/2007.
Melhor Filme Estrangeiro - Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles/2007.

Trailer Original:

2 comentários:

Anônimo disse...

4 Meses... é um filme SENSACIONAL. As escolhas do diretor foram bastante sensíveis e o resultado é bastante contundente. Acredito que não tenha entrado no Oscar pela aridez do tema, que costuma escolher filmes com temática mais leve.

Jacques disse...

Pedro,

Vc bem sabe como são os critérios para os indicados ao Oscar, né? Ainda bem que existem pessoas que, como vc, não são guiadas pelo mercantilismo cinematográfico americano. Valeu pela comentário.