quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O MARTÍRIO DE JOANA D´ARC

“Na França, sou chamada Joana….”


Quando se preparava para dirigir o filme que o tornaria uma lenda, Carl Theodor Dreyer assistiu num teatro parisiense a atriz Renée Maria Falconetti (uma atriz da Comedie Française). Ironicamente, ela atuava em um papel cômico (uma ironia difícil de entender). Talvez Dreyer quisesse lançar um desafio que provavelmente ela não poderia ser capaz de enfrentar, mas que também não poderia deixar de encarar.“La Passion de Jeanne d'Arc” é um daqueles filmes lendários que todo cineasta conhece, mas provavelmente muitos não assistiram. É desafiador, não apenas por causa de sua história dramática (da mártir com vestimentas no formato de cruz), mas por causa da maneira única com que Dreyer abordou esse material difícil – além de filmar o roteiro que recebeu, decidiu realizar um filme baseado nas transcrições históricas do julgamento de Joana.

Assisti aos extras do DVD em que a filha da atriz menciona que Dreyer havia gostado do que viu quando a assistiu, mas não havia ficado inteiramente certo de Falconetti era a Joana esperada. Quando ela surgiu para o teste, completamente desvestida de maquiagem ou artifícios, ele percebeu que ela era seria a escolha perfeita. Provavelmente inspirado pela audição, o diretor optou por filmar o elenco todo sem maquiagem. Também planejou filmar os personagens todos em close up, fazendo com que os detalhes dos rostos de cada um ficassem registrados na tela: um testamento da persistente modéstia do diretor e seu elenco.

A crítica Pauline Kael, talvez a melhor de todas, chamou a atuação de Falconetti como “a maior performance já capturada em um filme”. De fato, sua atuação não somente é maravilhosa, mas inesquecível. Contudo, a experiência de assistir à atriz é muito mais do que presenciar a interação entre uma atriz e o público. Assistir ao trabalho de Falconetti em Joana é participar de um experimento humano. É uma lenta e dolorosa sinfonia de expressões e emoções muito difícil de ser superada. Sua eloqüência física é mostrada através de seu martírio ao longo do filme, que pode também ser o resultado de uma jornada de auto-conhecimento de Falconetti durante os cerca de 18 meses de filmagem.

Em virtude da natureza técnica do filme (close-ups desconcertantes, realçados pelos cenários que Dreyer construiu fora de proporção para cada um), Falconetti é quase sempre exigida para atuar em close.. E que expressão! Capaz de demonstrar cada emoção existente durante a projeção, a atriz vai de um extremo a outro, do medo à profunda dor.

Naturalmente, o julgamento de Joana não é justo. Desde o começo, é obvio que se trata de um tribunal para mera formalidade - e não para justiça. Joana foi rotulada para ser uma traidora, uma herege em relação à Igreja. Sua indumentária masculina é vista puramente como uma transgressão sexual e não como uma necessidade política que de verdade é – uma mulher de longos cabelos loiros, usando vestido, seria capaz de inspirar algum sentimento senão sexual em um exército?).

O diretor cobre Falconetti com branco, a cor da morte. De fato, o filme todo é embebido com uma aura de mortalidade humana, desde túmulos sendo cavados até o desejo de sangue tão evidente no rosto dos juízes. Há momentos de muita tristeza , como aquele em que Joana desmaia e sofre uma sangria em uma tigela, para sanar sua febre. Quando ela é levada para argüição final, vislumbra uma tumba sendo cavada. Sua dor tem extrema força. Ela ama a vida. Daí, decide assinar uma confissão de modo a escapar da morte. Quando medita sobre sua traição à Cristo, reconsidera sua confissão, decidindo honrar Deus com sua sentença de morte.

A morte de Joana é a última conquista de Falconetti – provavelmente a mais forte experiência interpretativa que já vi na tela. Falconetti marcha ao longo de uma multidão de observadores. Está amarrada a um tronco de madeira, tendo seu corpo prestes a ser queimado, mesmo com sua alma heróica sendo imortalizada. Ao preparar-se para morrer, ela olha o povo. Percebe uma mãe amamentando uma criança. Falconetti demonstra a dor de Joana para o futuro das gerações. Seu expressão angelical conta a historia que todos devemos aprender: que deveríamos viver para transcender nossa presença física na Terra.

Joana percebe que sua escolha, a mais dificil que alguém pode fazer, foi acertada. Embora tenha havido alguma evidência que a atriz tenha se queixado ao interpretar Joana, foi a última vez que ela aparece num filme. A experiência fortemente emocional somada ao formalismo e rigor da maneira de filmar de Dreyer (que dirigia e ensaiava cenas em ordem cronológica, repetindo inúmeras tomadas, etc.) devem ter tido uma tremenda carga na frágil, porém poderosa atriz. É uma pena, mas não difícil de entender se Falconetti jogou toda a carga interpretativa de uma vida inteira em uma única atuação.

Somente assisti a este filme uma vez, mas com certeza não hesitaria em revê-lo. Não se pode desconsiderar que a direção e orientação de Dreyer foram fundamentais para o resultado final. Mas é o trabalho iluminado e transcendental de Falconetti que eleva o filme a um patamar superior junto aos grandes filmes do cinema. "O Martírio de Joana D´Arc" é hipnótico, uma obra de arte e a atriz é francamente responsável por isso. É uma experiência tocante, perturbadora e marcante.



"O Martírio de Joana D´Arc" (La Passion de Jeanne D´Arc)
1928 – FRANÇA - 95 min. – Colorido – DRAMA
Direção: CARL TH DREYER. Roteiro: CARL TH DREYER E JOSEPH DELTEIL. Fotografia: RUDOLPH MATÉ. Montagem: CARL TH DREYER E MARGUERITE BEAUGÉ. Música:VICTOR ALIX. Produção: SOCIETE GENERALE DES FILMS.

Elenco: MARIA FALCONETTI (Jeanne d´Arc) EUGENE SILVAIN (Bispo Pierre Cauchon), ANDRÉ BERLY (Jean d'Estivet), MAURICE SCHUTZ (Nicolas Loyseleur), ANTONIN ARTAUD (Jean Massieu), MICHEL SIMON (Jean Lemaître), JEAN d´Yd (Guillaume Evrard), LOUIS RAVET (Jean Beaupère), ARMAND LURVILLE (Juiz), JACQUES AMNA (Juiz), ALEXANDRE MIHALESCO (Juiz) e LÉON LARIVE (Juiz).

Trailer Original:


Do mesmo diretor:



Gertrud

5 comentários:

Fábio Rockenbach disse...

Estupefato. Foi assim que fiquei na primeira vez que terminei de assistir "O Martírio de Joana D'arc". Fiquei ali, parado, em frente à TV, a tela preta, por alguns segundos, pensando, absorvendo. Provavelmente uma das experiências cinematográficas mais poderosas que eu já vi em toda a minha vida. E ainda um dos 3 - senão o melhor - melhores filmes de todos os tempos na minha humilde opinião.
Carl Dreyer é magnânimo, gênio...
Preciso escrever sobre esse filme, venho adiando há muito tempo por medo...

Kau disse...

Jacques, você está diante de um pobre cinéfilo que sonha em ver este filme e NUNCA achou em parte alguma! =(
Abs.

Miguel Andrade disse...

Jacques, dormi ontem bem no finzinho... :( Mas seu texto me deixou com muita vontade de terminá-lo. Assim que me desconectar irei ver.

Fábio Rockenbach disse...

Jacques, preciso entrar em contato com você. Deixe um email ou msn, se possível, em jornalismors@yahoo.com.br

Abraço

Miriam disse...

Não assisti ainda, mas depois desta maravilhosa crítica tenho que assistir.
Beijos.