sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

BLADE RUNNER

"És tão diferente. És tão perfeito."

Los Angeles, ano 2019. Edifícios altos perdem-se nos céus nublados de poluição. As chaminés das fábricas soltam fumaça e a chuva ácida acumula-se entre os espaços que separam as gigantescas construções iluminadas com neon. As ruas da cidade estão povoadas por uma exótica miscigenação racial, ainda que os brancos se refugiem enormes prédios. Para alguns cuja permissão é dada, viver nas chamadas "colonias do mundo exterior" é a rotina. Para colonizar esses novos planetas, a companhia Tyrell Corporation desenhou os chamados replicantes. Esses andróides foram proibidos de visitarem a Terra. Entretanto, alguns desobedeceram essa regra e a patrulha dos blade runner têm a incumbência de caçá-los e destruí-los. Seria uma alusão ao Dia do Juízo Final, no qual somente os inocentes escapam do inferno? Pode ser. Nada neste filme rico em referências filosóficas e teológicas parece contradizer isso.

Rick Deckard (Harrison Ford) era um blade runner. Desiludido com esse caráter lacônico dos heróis do cinema noir, o ex-agente caminha pelas ruas molhadas pela chuva. Era o melhor em sua profissão e por isso é chamado por seus superiores para retornar à atividade, quando um pequeno grupo de replicantes - 2 homens e 2 mulheres - conseguem chegar a Los Angeles. Os andróides, programados para viverem até 4 anos, querem saber quanto tempo de vida ainda lhes resta e, assim, se é possível prolonga-la.

O líder dos replicantes, Roy Batty (Rutger Hauer) é loiro, forte, quase demoníaco. O encontro com seu criador, Eldon Tyrell (Joe Turkel), um Frankenstein futurista, resulta em uma profunda decepção. Tyrell que vive em uma pirâmide semelhante às construções maias e dorme em uma cama quase papal, não escuta as súplicas de Roy para prolongar sua vida. Assim, Roy, o anjo caído, mata seu criador, pai e Deus ao mesmo tempo.

O filme Blade Runner - baseada no livro "Os andróides sonham com as ovelhas elétricas?” (1968), de Philip K. Dick, que também escreveu a estória na qual se inspira Desafio Total (1990), foi um fracasso comercial, mas pode ser considerado como um marco no gênero da ficção científica. É um conto filosófico, deprimente, mas com uma extraordinária e impressionante direção de arte, uma sofisticada iluminação e uma grandiosa trilha sonora (Vangelis). Na minha opinião, um dos filmes mais significativos da década de 80 Poder-se-ia colocar a etiqueta "pós-moderno" e atribuir sua força ao ecletismo do diretor. Scott mostra talento para integrar diversos elementos arquitetônicos, detalhes de vestuário e símbolos de diferentes culturas e épocas.

O filme utiliza de forma econômica códigos de diversas naturezas, que assustam e resumem a confusão babilônica na linguagem que se ouve pelas ruas de Los Angeles. Inspirado no clássico de Fritz Lang, Metropolis (1926) e no visual do cinema noir, as imagens de Edward Hopper ou nos quadrinhos de Moebius, Ridely Scott consegue criar uma obra extravagante que convida o público a questionar-se sobre a essência da identidade humana. O substrato do filme vai-se mostrando pouco a pouco ao longo do filme, que trata aspectos do universo consciente e subconsciente. A semelhança fonética entre o nome do protagonista, Deckard e do matemático Descartes, é somente mais um dos inúmeros elementos que sugerem o conteúdo filosófico existente no filme.


Scott volta a utilizar do potencial homônimo das palavras aproveitando a semelhança fonética das vozes inglesas. O olho é um símbolo universal de reconhecimento e representa um sentido de auto-conhecimento "único" nos seres humanos. Mas em Blade Runner, os androides também são dotados com esse nível de consciência. "Não somos máquinas, Sebastian, somos seres físicos", explica Batty em uma ocasião, falando de sua característica humana e aludindo assim a um dos temas mais importantes dos anos 80: o corpo.

É precisamente o corpo que faz dos replicantes seres humanos. Rachel (Sean Young), a secretária de Elson Tyrell, fala a Deckard o risco de sua profissão, quando lhe pergunta se não havia matado alguma vez um ser humano, por engano- a pergunta sensibiliza o espectador, já que as diferenças entre o ser humano e sua criação são intangíveis. A própria Rachel envereda entre dois limiares. Ainda que sempre acredite ser humana, finalmente encara a realidade e descobre ser uma andróide; porém, de uma casta diferente. Rachel foi programada com a experiência da sobrinha de Tyrell, o que lhe dá a ilusão de ter uma biografia. Suas lembranças estão baseadas em fotos. E é também a fotografia o meio pelo qual os replicantes são descobertos.

Deckard utiliza a imagem de um quarto de hotel vazio como faria um detetive do século XXI ou, ao menos, como se acreditava que um detetive faria na década de 80. Com a ajuda de um aparelho chamado “Esper” amplia fragmentos de uma foto em um monitor. Deste modo, consegue uma espécie de visão de raio-x que permite entrar nos diversos níveis de profundidade do espaço em duas dimensões. Deckard descobre a imagen de uma mulher refletida num espelho. O detetive envereda para um investigação que conduz o espectador a uma viagem pela arte ocidental . Ridley Scott nesta cena, faz alusão a vários quadros, entre eles, “O Casal Arnolfini” (1434), de Jan van Eyck, uma pintura que mostra os dois protagonistas, e além disso o pintor e sua assistente refletidos num espelho.

O gosto de Scott em dar volta aos paradigmas culturais contribuem sem dúvida para dar uma aura de fascinação que o filme provoca, até o ponto que algumas de suas imagens foram convertidas em recordações de nosssa memória visual coletiva, como, por exemplo, quando Deckard segue a encantadora de serpentes Zhora através das ruas caóticas, labirínticas e abarrotadas de Los Angeles. Finalmente dispara tiros na mulher, que cai em câmera lenta sobre uma vitrine. Poder-se-ia dizer que esses fragmentos de cristal representam a realidade feita em pedaços pela troca de papéis que se dá até o final da estória. Deckard se converte em perseguido e a andróide Batty, é um indivíduo complacente e generoso.

Batty salva a vida do blade runner no último minuto e morre em seu luigar. A diferença moral entre replicante e ser humano não mais existe. Sobretudo quando temos cada vez mais indícios de que o próprio Deckard pode ser um andróide. Em 1992 foi lançada a versão do diretor, que suprime a voz em off do narrador e o final feliz – o que faz essa teoria cada vez mais plausível. Em julho de 2002, o próprio Scott afirmou que Deckard era um andróide. Harrison Ford, escandalizado, disse que durante a filmagem o diretor havia assegurado o contrário. Assim o debate continua aberto...



Blade Runner - O Caçador de Andróides (Blade Runner)
1982 - EUA - 117 min. – Colorido - Ficção Científica
Direção: RIDLEY SCOTT. Roteiro: HAMPTON FANCHER e DAVID PEPLOES, baseado no livro "OS ANDRÓIDES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?". Fotografia: JORDAN CRONENWETH. Montagem: MARSHA NAKASHIMA e TERRY RAWLINGS. Música: VANGELIS. Produção: MICHAEL DEELEY para THE LADD COMPANY e BLADE RUNNER PARTNERSHIP.

Elenco: HARRISON FORD (Rick Deckard), SEAN YOUNG (Rachel), EDWARD JAMES OLMOS (Gaff), M. EMMET WALSH (Bryant), DARYL HANNAH (Pris), WILLIAM SANDERSON (Sebastian), MAUREEN STAPLETON (Emma Goldman), BRION JAMES (Leon), JOE TURKEL (Eldon Tyrell), JOANNA CASSIDY (Zhora) e MORGAN PAULL (Holden).


Trailer Original:

Um comentário:

Anônimo disse...

excelente resenha.... Edson/SP