domingo, 24 de maio de 2009

NASCIDO PARA MATAR

“O morto sabe somente uma coisa: É melhor estar vivo”.


O narrador do ultimo filme de Stanley Kubrick, "Nascido Para Matar", é um homem dividido. Ele é a própria dualidade em pessoa. Membro do corpo de fuzileiros navais, em preparação para a guerra do Vietnã, seu apelido, ou melhor, nome de guerra, é Joker. No peito, este observador cínico leva o símbolo hippie da paz; no capacete, a expressão Born to Kill (Nascido Para Matar). É através de seus olhos que teremos uma visão crua da guerra do Vietnã - visão esta que se aproxima mais do delírio de “Apocalypse Now” (79), de Francis Ford Coppola, do que da obviedade de “Platoon” (86), de Oliver Stone. Assim como a personalidade de seu personagem principal, também, o filme de Kubrick, se divide em duas partes. A primeira, simplesmente fantástica, mostra a preparação dos jovens fuzileiros na ilha de Parris, sob o comando do obsessivo sargento Hartman. O ritmo dos cerca de quarenta e cinco minutos iniciais é implacável. Em marcha batida, quase seguindo o compasso dos diversos hinos reacionários cantados por Hartman, Kubrick mostra, de forma hiper-realista, ao espectador, como funciona, na prática, o discurso fascistóide da caserna. A crítica aqui transcende os limites da guerra do Vietnã e atinge em cheio o militarismo e a irracionalidade das forças armadas que lutam por interesses extra patrióticos.

Hartman fala sem parar (a interpretação de Lee Ermey, ex-sargento dos marines, na vida real, é surpreendente). Suas palavras articulam de forma impressionante sexo e ideologia. "Deus tem tesão pelos fuzileiros", esbraveja em certo momento; "Cuidem de suas armas como cuidam desta coisa que carregam no meio das pernas", vocifera em outro. A princípio, o espectador ri do absurdo das frases de Hartman e, principalmente, do seu relacionamento com o soldado Pyle (também interpretado de forma magnífica por Vincent D'Onofrio). Pouco a pouco, no entanto, desenham-se as linhas de uma relação perversa entre Pyle - um bobalhão que não consegue acompanhar o dinamismo dos companheiros - e Hartman. Misto de carência e repulsão, o relacionamento entre os dois resultará numa trágica explosão de miolos.

Tudo se inicia com o tratamento repugnante que Hartman dispensa a Pyle. Tratando-o feito um idiota, o sargento obriga-o a passar pelas maiores humilhações possíveis frente aos demais recrutas, como, por exemplo, marchar com as calças arriadas e chupando o dedo. Imprestável para serviços que requisitam vigor físico, Pyle revela-se, contudo um exímio atirador. Sua mira é invejável. Atento às lições do sargento, Pyle vai lentamente se transfigurando.

Perde o ar bobo e assume a face doentia de um demente. "O instinto assassino precisa ser excitado", ensina Hartman, citando em seguida o exemplo de alunos "exemplares" do corpo de fuzileiros navais: Lee Oswald, responsável pela morte do Presidente norte-americano John F. Kennedy, e Charles Whitman, que, do alto de uma torre, atingiu mortalmente 12 pessoas, entre jovens, velhos e crianças. A primeira parte fecha-se com a resultante trágica do prolongamento da loucura de Pyle. Crime e castigo.

Após o trágico desfecho da parte um, o filme dá, ao mesmo tempo, um salto e uma queda. Salto, porque sai da ilha de Parris, direto, sem escalas, para o Vietnã. Queda, porque a narrativa perde o ritmo frenético inicial e adquire um tom de relato jornalístico - cansativo e inoportuno. Assim, se a primeira parte, repleta de seqüências filmadas em interiores, lembra “ O Exército Inútil” (83), de Robert Altman, a segunda, aproximando-se de uma forma excessivamente formal de narrativa, remete-nos a “Os Gritos do Silêncio”(84), de Roland Joffé.

Enquanto na primeira parte o cineasta deixa sua imaginação f1uir, transformando a ilha de Parris num asilo de loucos, na segunda, tropeça ao querer mostrar-nos detalhadamente a difícil vida de um correspondente de guerra (Joker), comprometido com a desinformação - em determinado instante, por exemplo, ele é obrigado, pelo próprio chefe, a modificar as palavras "caça e destruição", aplicadas a missões militares, por "busca e esclarecimento" - mais convenientes à orientação do Departamento de Imprensa e Informação para o qual trabalha.

A queda, no entanto, não chega a abalar de forma desastrosa a organicidade de Full Metal Jacket (expressão que significa "pente carregado de balas"). Há, ainda, momentos de grande impacto. Na seqüência que antecede ao final (uma atiradora vietnamita vai aos poucos matando vários soldados norte-americanos), Kubrick cita um fato verídico, referente a um batalhão de fuzileiros que demorou uma semana para derrubar um foco de resistência vietnamita, formado por (pasmem) dois atiradores.

Li que na cena há longos planos rodados como auxílio de uma câmara steadycam. Com certeza, por isso, criou-se um efeito mais brutal para aquilo que era filmado. Contudo, o primor mesmo fica por conta da última seqüência, talvez a imagem que melhor defina o nível de alienação dos jovens que combateram no Vietnã. Mestre em criar contrapontos audiovisuais, Kubrick encerra “Nascido Para Matar” mostrando os fuzileiros marchando sob ruínas vietnamitas ao som da música do Clube do Mickey Mouse. Essa é uma imagem que com certeza jamais esqueceremos. Genial.



"Nascido Para Matar" (Full Metal Jacket)
1987 - EUA - 116 min. – Colorido – GUERRA
Direção: STANLEY KUBRICK. Roteiro: STANLEY KUBRICK, MICHAEL HERR E GUSTAV HASFORD, baseado na obra “The Short Times”, de GUSTAV HASFORD. Fotografia: DOUGLAS MILSOME. Montagem: MARTIN HUNTER. Música: ABIGAIL MEAD. Produção: JAN HARLAN, distribuído pela WARNER BROS.

Elenco: MATTHEW MODINE (Joker) ADAM BALDWIN (Animal Mother), VINCENT D´ONOFRIO (Pyle), LEE ERMEY (Hartman), DORIAN HAREWOOD (Mimi), KEVYN MAJOR HOWARD (MacCaulay), ARLISS HOWARD (Eightball), ED O´ROSS (Rafterman), JOHN TERRY (Lockhart), KIERON JECCHINIS (Crazy Earl), KIRK TAYLOR (Payback), TIM COLCERI (Doorgunner), JOHN STAFFORD (Doc Jay) e BRUCE BOA (Poge Colonel).



Cenas do Filme:


Do mesmo diretor:



Barry Lyndon

3 comentários:

Paulo Alt disse...

Nuna assisti esse filme. Gosto bastante dos trabalhos do Kubrick. Aliando isso ao fato de ultimante eu estar gostando mais e mais de assuntos e filmes que envolvam a 2ª guerra mundial ou a do vietnã... eh perfeito. O filme já está anotado aqui pra eu procurar.
E vc citou o Robert Altman
meu nome eh quase igual
paulo roberto altmann heaeahoihioe
flw

Jacques disse...

Assista. Já que gosta da temática da II Guerra Mundial, recomendo, além dos que mencionei no post, tbm "Os Melhores Anos de Nosss Vidas", de W. Wyler. Sobre o Vietnã, incluo "Johnny Vai à Guerra", de D. Trumbo e o espetacular documentário "Corações e Mentes", de P. Davis. Abcs.

Wally disse...

WOW...Adorei a crítica. Bem completa. Nunca vi o filme, estranhamente. Sou fã de Kubrick e irei tentar ver o mais rápido possível.

Ciao!